segunda-feira

Room with a Liffey view II

Trocámos umas cosy words, caminho aberto pelo meu "bom dia" na língua local. Indicou-me um Inn virado para o rio mas longe do centro. Depois de ter passado pelo quarto e de ter repetido a dose de bangers and mash, num pequeno-almoço que me soube pela vida, coloquei o gorro e entrei na rua na hora de ponta. Lembrei-me dos tempos da proibição; quando queríamos beber um copo tínhamos de ir a Belfast. Lembrei-me de quando atiráramos as bicicletas ao Liffey, lembrei-me das casas de Dublin, dos bairros de Dublin, dos bares de Dublin. Lembrei-me do Ricky, de quando entrava nos pubs e calava as ladaínhas irlandesas e punha toda a gente a cantar em coro músicas do Sinatra.
Trepei a cerca das traseiras da casa da Sand. Tirei o gorro. Quando espreitei pela janela da cozinha as panquecas estavam a chegar à mesa. Ao contrário dum susto recebi uma cara inquisidora que explodiu num enorme sorriso. Sand e os miúdos correram para a porta das traseiras, gritando o meu nome num abraço do Verão passado. As bangers aconchegaram-se ao mash e arranjaram espaço para mais umas panquecas e umas longas histórias, contadas por caras felizes, radiantes. Senti pela primeira vez, desde o início da fuga, que estava em segurança. Essa sensação abriu-me ainda mais o sorriso e exclamei: "God save the micks!!"

terça-feira

Room with a Liffey view I

As margens do Liffey...O último Drakkar abandonara-as há mais de 800 anos. Desceu, lento e derrotado, o rio que eu agora subia. Enquanto a lancha ronronava lentamente corrente acima, e Dublin crescia no horizonte por entre o que o amanhecer revelaria serem verdes sem fim e muralhas em redor, na escuridão do crepúsculo senti-me um viking de regresso a casa, após séculos de fuga e batalhas.
Cruzei-me com mais uma barcaça de carvão e parei a lancha. Saltei para a margem. Estava gelado, nunca era verdadeiramente Verão por aqui. Apesar disso, a roupa secara, na proa. Recolhi, uma-a-uma, as peças de roupa, após três dias no mar. Recolhi, uma-a-uma, as memórias do que me trazia tão longe. Olhei em volta. Nascia o dia. Ao longe, um horizontal fino fio azul eléctrico riscava dois tons de negro: o de cima, completamente plano e puro; o de baixo, recortado pelo relevo das árvores que perturbavam a perfeição que sempre tem o nascer do dia. Maidin mhaith!, disse para mim mesmo. Maidin mhaith, yourself! respondeu-me uma voz de sotaque carregado...

quinta-feira

Ó mar alto...

Cheguei a Newquay a meio da tarde. Esperava-me um céu antipático e uns quebra-côcos, ao fundo da falésia, que não convidavam ao surf. "Que péssima recepção", pensei, ao chegar a uma vila famosa por praias de água fria encaixadas em paredes de rocha branca e pelas melhores ondas a norte do canal da mancha.
"Metade dos polícias do continente já devem ter a minha foto e eu aqui, a pensar em surf...". Newquay era uma vila piscatória. Lembrava-me doutras aventuras por estas bandas. Aí tinha conhecido a descontração dos pescadores locais que, ao contrário doutras paragens, tinham o cândido hábito de menosprezar as suas lanchas e outros pequenos barcos, deixando-os destrancados e à mercê de quem, como eu, procurava sair de circulação e chegar à Escócia por outro meio que não a M40 ou o Glasgow shuttle da British...
Um jovem paki, no que teriam sido os seus early years de grammar school caso o pai tivesse resistido à tentação do álcool e não tivesse destruído a economia familiar, pediu-me dinheiro; eu troquei-o por uma dose e meia de fish-n-chips e uma lata da draught local, que ele me foi buscar ao boteco da esquina. A fome apertava, e queria garantir que me continuariam a procurar ainda apenas a sul das Shetland...
A noite caiu de repente, por detrás das nuvens, sem que tivesse visto o céu naquele dia. Até o habitualmente reconfortante verde dos pastos junto ás falésias, no seu fantástico contraste com o branco calcário e com o amarelo pálido e azul forte da praia e do mar, haviam passado o dia a variar entre tons de cinzento. Pelo menos era o que aquele dia deixaria na minha memória, talvez fosse assim que estivesse a conseguir traduzir aquelas últimas horas.
Voltemos à noite: aproximei-me da maré vazia na praia, junto à falésia a que se chega após sairmos da vila. Percorrera a pé o caminho até lá. Não antes de ter garantido que os locais haviam abandonado a praia e me haviam deixado um despercebido corredor de passagem.
Com um saco de plástico impermeabilizei os artefactos mais vulneráveis à água do mar: carteira, bússola, botas de montanha. O resto da roupa sobrou dentro da mais-ou-menos impermeável mochila. Fiz-me ao mar de calças de ganga, t-shirt e pull-over pretos, como a côr da noite e do mar em que me embrenhava.
Enquanto nadava, fazia-o em direccção ao local em que percepcionara, pela última vez, durante o lusco-fusco, as pequenas embarcações.
Nadava agora em fortes braçadas e esperava chegar rapidamente junto à mancha de barcos fundeados; mas essa mancha teimava em não se destacar do fundo, agora totalmente negro. Parei de nadar; olhei para trás e vi que estava já muito longe, e muito cansado. As roupas molhadas pesavam agora toneladas...Enquanto ofegava e tentava manter-me à tona de água olhando para a costa, o meu calcanhar tocou em algo que se movia. Fiquei estarrecido! Mas era apenas a corda da âncora do primeiro barco do grupo.
Depois de analisar os vários barcos fundeados, escolhi uma lancha com um bom motor. Escorria água quando consegui ligá-lo e me sentei ao volante, mão no acelerador. Guiando-me pela luz do farol, rumei para fora de costa. O mais lentamente possível. As ondas também eram lentas, e as luzes da vila foram sendo absorvidas pela mancha escura que, nesse momento, tudo absorvia, excepção para os violentos rasgos de luz do farol, que tudo cortavam em imparáveis movimentos circulares. O motor ronronava, e o marulhar da água contra a proa trouxe-me à memória outras viagens que não fizera sózinho.

segunda-feira

A viagem


05h43. Vauxhall Marina. "Nem de propósito", pensei eu, enquanto sonhava com o cais de Cardiff, enquadrado pela bela e ocre "The Pump House" em fundo. O carro, ocre também, há muito que perdera o tom vermelho de vaidade que ostentara há 30 anos. O fumo que se soltou quando fiz a ligação directa, esse era mais branco do que nunca mas foi recebido por mim como pela turba no Vaticano. "Temos Morris!", exclamei. Acomodei-me do lado direito, mão esquerda na manete de mudanças; arranquei depois de ligar o limpa-pára-brisas, em ligeiros soluços de velhice mecânica. Tudo correu bem até ao primeiro roundabout. A minha janela estava aberta. Escutava em fundo um ruído crescente. Olhei, como habitualmente, para a esquerda. Nada. Avancei, marcha calma, que a máquina era tão lenta quanto discreta. O ruído cresceu em minha direcção mas parecia provir da direita. Dei por mim a avançar de frente para um camião Leyland que me cegava com sinais de luzes. Travei, derrapei, e ele passou por mim num ruído trepidante que me estremeceu e me deixou esclarecido quanto à prioridade nas rotundas britânicas...Folkestone ficou para trás num ápice; Hastings - "Gavin, grandes ensaios!", pensei, recordando os tempos em que este - também - três-quartos era um dos melhores jogadores do mundo e actuava na selecção local de rugby local, de camisola vermelha e dragão (arghh!) ao peito, fazendo impossíveis jogadas de antologia que ficaram gravadas nas fundações do desaparecido Arms Park de Cardiff - Newhaven, Brighton, Chichester. Eram 08h17. Estava próximo. A luz do gas acendeu-se e comecei a aproveitar melhor o embalo das descidas. Entrei em Portsmouth pela A288, em direcção a Fratton e deixei o Morris junto à Southsea...marina. Sou um poeta, ri-me.
Apanhei um (outro?) British Leyland, desta feita de dois andares, de novo vermelho, mas este como a tradição, e deixei-me pendurar na barra traseira, apanhando de frente na cara o vento fresco da manhã. Já não chovia. Ao chegar à estação, comprei o meu bilhete numa máquina automática, depois de ter trocado umas notas num posto de câmbios. A automotora de duas carruagens estava excessivamente aquecida e evaporava a humidade da chuva nocturna. Estava sózinho, apesar da hora de ponta, tal como todos os comboios cujo destino era outro que não Londres. Adormeci.

domingo

Desembarque

5h07. Dover. A outra costa ficou definitivamente para trás há alguns minutos. A travessia no ferry foi dantesca. Enroscado na traseira duma pick-up, arrisquei muito. Só o percebi quando paralisei ao reconhecer o inesquecível fungar da cadela da polícia, cheirando a lona da carrinha; estou vivo porque, entre nós, se interpuseram o intenso cheiro a peixe e as muitas caixas de esferovite recheadas de lagostas vivas. Navegar sobre ondas de 7 metros com aquele odôr nas narinas deixou-me um enjôo tão forte que só agora começa a desaparecer, enquanto subo o morro debaixo de chuva. Tropeço de 3 em 3 metros, tal a escuridão. Avanço devagar mas decidido. Tenho de chegar a Portsmouth rapidamente mas sempre pelo Sul, junto à costa. O dia está a nascer. Começo a ver melhor o caminho. Começo a poder estugar passo.

sábado

O plano


As paredes brancas tinham o picotado em relevo das casas de praia, desagradável ao toque. Reconhecendo as semelhanças, pareceu-me estar a deitar-me na larga cama de casal dos meus pais, em mogno maciço anos sessenta, na casa de praia minha infância. De olhos nas vigas de madeira do tecto, tentei perceber porque é que aquele tipo de revestimento nas paredes sempre me causara uma sensação mista de conforto e de irrequietismo, como se estivesse em trânsito, como se me garantissem, mal chegava, que as férias , mais dia menos dia, iriam acabar e teria de voltar para a merda do colégio. E a boa sensação que tinha quando, em todos esses inícios de férias, em reacção a esse pensamento anualmente recorrente, retorquia infantilmente:"Quero é que se lixe! Ainda faltam 3 meses!!". A inquietude também deveria ter origem na agitação normal das férias, em que o descanso merecido não era seguido, sempre entrecortado pelas idas à praia, pelas longas horas investidas na rua, depois do jantar, em intermináveis jogos de escondidas, pelas expedições organizadas ao pinhal em grupos expedicionários em calções de praia, pernas zurzidas pelas silvas,ramos em vez de espadas e t-shirts com o nosso nome no peito, qual padrão d'armas distinguindo os cavaleiros.
Depois de ter decifrado este dilema da minha infância, e ainda de olhos nas vigas do tecto, agora quase na escuridão, pensei nos próximos passos a dar e na melhor forma de chegar à Cornualha sem ser detectado. A fronteira inglesa tinha um controlo efectivo, e eram famosas as histórias de chineses sufocados dentro de camiões TIR selados.

terça-feira

ONGI ETORRI ! ...




Sentei-me na sala, num enorme sofá de tecido inglês com grandes almofadas macias. À volta abundavam os tons de madeira escura. A temperatura descera, e aquele fresco fim de tarde, de fim de Verão, avivava a boa lembrança que o impregnado cheiro a lareira trazia do crepitar de lenha basca.
Passos.Voltei-me. Um criado, fardado de branco, entregou-me a chave do quarto da torre. Num ar sério exclamou o seu mais simpático: "ONGI ETORRI !" Sorri ligeiramente e balbuciei um Merci, enquanto me afundava de novo nas almofadas e na brochura sobre Guethary, com a ajuda da qual escolhia o restaurante dessa noite. Deixei-o sair da sala; o Sol submergia na falésia de Cenitz. Levantei-me e dirigi-me ao quarto.

quarta-feira

Allons-y!





Abandonei precipitadamente a igreja. Quando os pneus chiaram ainda ouvi uns gritos hispânicos, e a automática do tipo no passeio da direita saía do coldre quando passei por ele já a puxar a segunda. Os pneus chiaram na curva à esquerda, entre as buzinas do semáforo vermelho, e passaram a fundo pela estação de comboios. Subi a castelhana, e o velho hábito de ter sempre a mochila guardada na mala do carro preto levou-me, sem remorsos, a entrar na M4 em direcção a nova fronteira.
Entrei na última bomba da Elf antes do face-a-face com os gendarmes. O dia vinha caindo desde Madrid, e a noite apresentava-se ameaçadora, num vento soprado que arrastava perceptíveis nuvens baixas carregadas de mau-humor. Comprei o Figaro e descobri, nas folhas abertas da página 15, enquanto sorvia um Pernod e trincava um croissant, sinal de que continuava em território proibido - "(...) en conduisant une voiture sportive, à échapé aux essais de la police espagnole pour l'arreter aux milieu d'une rue du centre de Madrid. Il s'agissait du suspect d'avoir tué le président du(...)".
Allons-y!

sexta-feira

Higiene de corpo e alma

"Precisava mesmo de dormir", pensei, enquanto vestia a última t-shirt lavada que me restava e me enroscava na cama de casal.
Acordei já o calor apertava. Depois de retemperado pelo duche frio, vesti de novo as calças de ganga e a camisa da véspera; em conjunto, conseguiram passar-me algum do seu mau humor.
Após um pequeno almoço rápido, envolvendo, entre outras coisas, um donut e uma coisa azeda a que por ali chamam café, entrei na barbearia Desi. Provavelmente em honra da filha de um dos três barbeiros. A barbearia era estreita e comprida e as três cadeiras, colocadas sequencialmente frente ao longo espelho que cobria toda a parede, eram dominadas cada uma pelo seu artesão. Na parede oposta, pequenas cadeiras forradas a napa e esventradas por cortes antigos revelavam, aqui e ali, pedaços das suas entranhas de espuma. Sentei-me à espera de vez observando, à vez também, o trabalho de cada um deles. Tentei nessa observação identificar o lugar de cada um naquela sociedade de cortadores de cabelos e outras pilosidades alheias. O primeiro, junto à porta e à montra, era seguramente um empregado. Trabalhava ao sol e, por isso, ao calor. O suor escorria-lhe pelo rosto. Assim, apesar de magro e do cabelo tingido de negro, dum negro de restaurador Olex, parecia mais gordo e mais velho do que os 50 anos que deveria ter. Tinha longas e afiadas unhas. Apesar de bem cuidadas, ameaçavam péssimo efeito no escalpe dos clientes (vítimas?) e deveriam ter contribuído de forma decisiva, ao longo dos últimos 25 anos, para a sua situação de reles funcionário.
O segundo, a meio da estreita sala, era a antítese do anunciado nos inúmeros rótulos de produtos para a queda do cabelo. Exibidos junto ao espelho em prateleiras de vidro, denegrindo a sua marca ao escondê-la atrás duma camada de poeira humedecida, não haviam disfarçado que a sua calva era lisa, sem rugas. Apesar de balofo, tinha um ar mais saudável que o do funcionário anterior. Concentrado, fazia a barba a um comum cliente; mesmo através dos gestos precisos, mecânicos e gastos por uma vida que os usara, conseguia transparecer, não sei como, a sua vontade eterna de ter tido outra profissão. Pintor, talvez, artista doutra arte, seguramente.
O terceiro era claramente o accionista maioritário. Os anteriores trabalhavam em silêncio. Este era o responsável pela voz de rádio a pilhas que emitia, desde que eu entrara, as descrições pormenorizadas do estilo de jogo do Atlético local à pobre vítima que caíra na sua cadeira. À esquerda dos seus gestos espalhafatosos e de tirar olhos, a tesoura fazia razias sucessivas aos quadros que, pendurados na parede do tecto falso da passagem para a estreita casa de banho, exibiam formações antigas da equipa madrilena, em conjunto com bilhetes rasgados de jogos célebres.
A sorte pareceu estar do meu lado quando o barbeiro de unhas afiadas levou o único cliente que ainda esperava antes de mim. Coube-me assim o sócio minoritário do meio da sala. Pedi-lhe máquina 4, paguei e saí sem uma palavra, não sem antes ter travado, agarrando-lhe a mão, a sua primeira e única tentativa de corte das minhas patilhas e da restante barba.
Enjoado de tantos campeonatos por ganhar apesar de jogar tão bem, segui pela sombra da rua larga. Entrei numa grande e bela igreja de bairro, anos 60, frente à qual o meu carro esperava desde a véspera, estacionado sob protecção divina. Rezei. Quando saí, reparei em dois homens parados à sombra, em lados opostos aquele em que o meu carro estava estacionado. A quase simétrica distância a que se encontravam do carro denunciava-os de modo gritante. Decidi voltar à igreja. Ao passar as altíssimas portas de madeira, o padre, que já me observara anteriormente, avançou na minha direcção, num ligeiro sorriso e olhos cravados nos meus:

terça-feira

Américas

Deixei-me a mergulhar contigo nas ondas, até que um som mais agudo me trouxe a fitar com lucidez o tecto de madeira antiga do grande salão da entrada. Matando saudades, circulei o olhar pelas paredes revestidas a nobre madeira escura, girei ao longe pela porta, giratória, e voltei a entrar em direcção ao longo balcão corrido, de longos varões dourados, dum dourado que fora ouro, nos velhos tempos em que no ar se sentia o fabuloso cheiro a café da ilha que os gringos levaram.
Não sei se foi da lembrança de San Juan se foi da entrada do ritmo de Salsa, mas desviei o pensamento para as tarefas em curso. Humedeci os lábios de rum, olhei-me no espelho do bar e pensei como o corte de cabelo do dia seguinte, a pente 4, iria a matar com a barba, de 5 dias.
Saí e iniciei a descida da rua, deixando para trás duas moedas e um sorriso de resposta à miúda que me atendera. Respondera-me algo que me soara a "Tili" num sotaque carregado e sorrira, à minha pergunta sobre a origem da sua beleza rara. Depois dum trocadilho sobre Las Monedas, percebi donde provinha. Santiago do "Tili".
Já em Atocha, dobrei a esquina, entrei na recepção do velho hotel e pedi una habitacion. Ao pedido de identificacion respondi "Vengo a tercios". Reconhecendo de imediato a expressão cifrada, o recepcionista fitou-me atentamente, como que tentando perceber o que tinha de diferente. Num único gesto, estendeu-me a chave do 312.

quarta-feira

As gajas passam-se!

"As gajas passam-se completamente!", pensei. "Isto não é possível. Depois de tudo o que passei para a vir buscar o mais rápido possível, esta gaja deixa-me uma declaração de amor e baza!", disse em tom baixo enquanto gesticulava em pequenos gestos algo descontrolados. "A gaja bazou, grande estúpida! Vai ser caçada na hora! Tou feito com isto. Completamente!", tentava eu controlar a fúria e o tom de voz. Iniciei a pesquisa à casa. Procurava vestígios, algo que pudesse denunciar a sua presença ali nos últimos meses. Mas a Margarida tinha estado atenta aos meus conselhos e só um agente muito imaginativo veria a imagem duma morena de olhos negros sentada em almofadas indianas a "chatear" no messenger comigo ou a abrir um browser. A casa, apesar da poeira que se sentia no ar, estava imaculadamente limpa. "Só a carta é que teria dado cabo de tudo. As gajas são românticas, é uma porra. E depois passam-se, descontrolam-se.", pensei, enquanto retirei o pano verde que protegia a caixa e limpei os manípulos da casa de banho, depois de a ter usado; limpei também a torneira por onde bebi o que me soube a dois litros de água. E, limpando a maçaneta, saí.
Apanhei-me em pleno início da movida; eram dez da noite. Pequenos grupos de três, quatro, cinco mulheres, lindas como só as espanholas, subiam de mão dada em direcção à Plaza del Angel. Subi com elas e entrei no Café Central, onde o que parecia ser a primeira banda da noite atacava o solo do "Practice Makes Perfect". A Billie Holiday do momento tinha uma pinta desgraçada e sorriu-me quando passei e cantava "...let´s practice some more, we're not doing bad right now!". Pedi uma Cuba Libre e, encostando-me ao canto do balcão, ao som de "Remember", fui até à praia e, como tinhas prometido, lá estavas. Abracei-te nesse doce pensamento.

segunda-feira

A carta

"Querido Vicente,

As noites geladas aqui passadas sem ti foram fazendo de mim uma mulher igualmente fria, como uma pedra recolhida no Verão na margem dum rio e levada num bolso, em viagem, para depois ser lançada, atirada para o leito dum outro rio, gelado, num país distante, num continente distante, no fim do mundo.
Como quem lança um xisto deslizante sobre o rio, na esperança de que siga à superfície e se salve na margem oposta, sei que tudo fizeste para impedir que as coisas se passassem assim. Mas não consigo deixar de me sentir a pedra gelada em que me tornei, que se afundou na travessia. E nem este calor de Junho faz derreter a mínima camada à superficie da rocha basáltica, lisa e impenetrável que agora sou. Isso revela-se na permanente ausência de diálogo; há oito meses que apenas falo para pedir numa loja aquilo de que necessito. Por dentro, também me sinto de pedra e o meu corpo acompanhou-me nesta metamorfose; está mais seco, magro, e move-se com a rigidez própria dum rochedo."
Os dias passam como quem espera no silêncio o despertar do vulcão e chegue a hora em que tu, disparado destacado do seu centro, por entre milhares de outros pedaços de magma incandescente, caias sobre mim, abraçando-me e derretendo-me com o teu calor sufocante.
Mas nuvens de chuva parecem não querer abandonar a boca do vulcão. E tu não voltas. E tu não explodes e irrompes pela porta da entrada, de braços abertos e enorme ramo de gerberas laranja-fogo e te abraças a mim, a chorar.
Eu choro. Choro noite após noite. O fim da Primavera já chegou, cheio de calor, e eu mantenho-me imóvel, fria, baça, chorando.
As notícias do dia de hoje levaram para além do limite a dor que sinto. Escrevo esta carta na fé de que nada disto seja verdade, de que o que hoje ouvi já várias vezes sobre a perseguição, o acidente e a morte em plena estrada do alentejo - do nosso alentejo - do "Homem que matou o presidente" não passem duma blague, duma enorme brincadeira de mau gosto, dum enorme dislate. Mas já nada me pode atingir, agora que sou uma fraga. Vou abandonar a casa porque sei que, a esta hora, também já me devem procurar. E se tu - por teres conseguido outra vez, mais uma vez, ludibriar a fortuna - estiveres a ler esta carta, sabes em que praia me juntei aos outros seixos e pedras que a protegem das investidas do mar.

Amor,

Margarida"

terça-feira

Las Huertas


O Sol já se ia cobrindo com o lento bando de pássaros que chegava para dormir nas dispersas árvores do jardim botânico. Eu, preocupado, há muito que havia feito ninho na sombra dum arbusto; aguardava pacientemente o fecho das portas de grades de ferro e as badaladas que o anunciavam. De repente, o teu andar sensual fez-se sentir no ar quente que agitava levemente as folhas que me protegiam, do Sol e...de ti. Vã protecção aquela que, tal como a minha força de vontade, historicamente mais nos unira do que separara.
As badaladas do sino do jardim empurraram-te os metros finais e tu, rodeando o arbusto, baixaste-te suavemente e colocaste o teu dedo gelado nos meus lábios fechados, mantendo o silêncio. Passaste-me a pequena caixa de madeira, forrada a pano verde escuro e deixaste-me o teu olhar, enquanto te afastaste na mesma cadência, suave e flutuante.
Esperei quase uma hora pela noite mais escura que me escondeu dos olhos mais atentos quando saltei o gradeamento, colado a um cipreste. Cibelles, Las Huertas, número 47. O último andar tinha águas furtadas. Da caixa, junto ao papel rabiscado com a morada, retirei a chave. A porta abriu-se com as dobradiças a pedirem óleo, num rangido triste e só. O pó sentia-se no ar, flutuando no calor da noite. A sala tinha uma mesa antiga, ao centro. Sobre ela, um papel. Debrucei-me para ler:

sexta-feira

Castela

A proveniência do cheiro a bafio da recepção era-me totalmente alheia mas o seu resultado prático estava a perturbar-me a escolha das pesetas. Estava calmo. Depois de as entregar, o olhar descaiu-me e fixei a alcatifa cor-de-sangue por alguns momentos, enquanto terminava o pensamento que se iniciara no duche e se prolongara pela sala de desayuño, cheia de cereais de marca branca e leite de pacote. "Em Atocha fico tranquilo", pensei; "é suficientemente movimentado para não darem por mim e, com sorte, ainda me perco no rastro e desapareço..."
As chapas de matrícula mudaram num ápice de dono e agora era um insuspeito habitante do Ayuntamiento de Pontevedra. E que adorava Madrid.
Entrei pela M2 na hora de ponta, e achei-me irreconhecível no meio de tanto comedor de turron de alicante. Passei à frente do hotel pela primeira vez às 10h07. Um autocarro descarregava turistas, devidamente empacotados. Entrei na primeira transversal, cheia de árvores, vazia de movimento. Depois de estacionar, atravessei o Paseo, entrei no Museo e dirigi-me ao jardim. Faltavam duas horas para a hora combinada.

quarta-feira

Sem fronteiras

O horizonte assomava ao fundo, um fino risco quase azul. Para trás, a noite, a cama ainda quente, a lâmina de barba descartada, o ar da estrada poluído com o fumo do GTD, os traços da noite a desvanecerem-se ao som murmurante da sexta e dos 190.
Passei a fileira de postos de controlo num abrandamento acelerado, não fosse a guarda (guardia?) acordar e pensar que ainda havia fronteira. Meti a fundo na autopista. Direcção: o centro do reino.
Os três dias sem dormir e os pesadelos da véspera faziam sentir-se de cada vez que piscava os olhos, um piscar de olhos que tendia a demorar-se mais e mais na fase em que os olhos se fechavam, até que assim ficaram: fechados. Não sei quanto tempo dormi mas acordei num sobressalto: ainda agarrava o volante e o taquímetro marcava 180. Em dispneia intensa, abrandei, liguei os quatro piscas e encostei à berma. Entrei no primeiro restaurante que vi, passei directo até ao balcão, balbuciei "servicios?", e segui o dedo cujo dono assustara, descendo até à cave. Às náuseas que o cheiro provocava sobrepôs-se a agradável sensação da água gelada na cara e no cabelo. Recuperado, subi, sentei-me numa mesa e só saí depois de vários bocadillos de jamon con queso, alguns cafés con leche e dois cafés solo. Solo, entrei no carro preto e decidi parar na primeira terriola, que afinal não o era: Talavera. Ao primeiro hotel que avistei na rua principal, virei na transversal e estacionei num beco duma rua secundária. O quarto era limpo, o prédio tipicamente espanhol, de tijolo maciço, maciço desde os anos 50. O cheiro dos lençois era diferente, experiência à época comum e depois terminada pelas multinacionais dos detergentes. O cheiro lavado fez-me adormecer na almofada confortável. O velho televisor emitia, quase em pensamento, uma voz cantada de mulher que me falava da Margarida. E dizia: "se quieres quitarrrrme la vida que, para nada, para nada me sirve sin ti...". Adormeci.

sexta-feira

Entre muralhas

Avistei-as antes de chegar à rotunda. A sensação era a mesma: a da certeza de que quem ali vivia não tinha noção de que lá vivia, de facto. Passeavam no meio do casario seiscentista mas o que viam eram casébres, ou "casas vélhãs". Faziam as compras em arcadas com mil anos de história mas afinal eram "ruas sem luz e lojas pequenãs", com "os tijolos à mostrã", fazendo referência ao tijolo maciço original que, qual obra de arte, estruturava as abóbodas dos pisos térreos das fantásticas construções. Os esconderijos naturais e de postal das ruas da mouraria eram "ruas estrêtas", "nã se pode quase lá entrar com o carrõ!". Foi numa dessas que deixei o meu, junto à Sé. O movimento era quase nulo, tal como a temperatura do ar. Apenas o ruído dum compressor, ventilando o interior dum restaurante, dava a entender haver vida humana atrás daquelas paredes.
Desci a rua empedrada, dum empredado desorganizado de torcer pés, e cheguei "à da tia da Margarida". Bati quatro vezes, e já ia desesperando quando o vidro fosco da porta de madeira verde-escura se iluminou ténuamente, com uma luz lá ao fundo. Os passos leves da velhota deram lugar a um "Mê filho, que fazes tu aqui a estas horas da nôtê?", instalado num sorriso sem placa. "Entra, filho, entra que está muito friuo!" Aquela mania de prolongar o fim das palavras era outra herança não reconhecida como tom acolhedor que era. Pedi para ficar "um dia ou dois" que a Margarida estava para fora e eu tinha ido ali em trabalho. Deixara o carro a arrefecer na garagem do pátio, e havia fechado eu o enorme portão de grades que estava aberto. Podia enfim dormir pela primeira vez, em três sufocados dias.

O homem que matara o presidente

Decidi divergir para ganhar tempo. Guadalupe. Nunca percebera bem o que uma ilha das caraíbas fazia pendurada numa tabuleta de estrada alentejana, pensara, enquanto a traseira crepitava nos torrões da berma. Quilómetros de isolamento depois, passei Guadalupe; atrás duma velha colcha, estendida à laia de toldo vertical, duas velhotas costuravam à sombra, na beira da estrada. Enquanto elaborava no raciocínio que as levaria a praticar este tricotar ao ar livre junto à estrada - provavelmente para terem companhia das caras diferentes e espaçadas que passavam em carros apressados - saí das ruínas das suas vidas e entrei de novo na minha solidão da planície. Deixara os lagos há largos minutos, na estrada principal, e a pouca água fazia-se sentir na erva rasteira dum verde pálido que cobria todos os cantos e entrava no chão das muitas ruínas. Estas, aqui e ali, entre eucaliptos e clareiras, como lápides, abriam alas à minha passagem.
Deixei o cemitério à entrada de Valverde, desci a rua principal e, depois de três esquinas bem contornadas, escondi o carro atrás dos barracões das alfaias e dirigi-me ao café. Mesmo que me apanhassem ali, estariam a jogar fora de casa, pensei, enquanto ouvia já em fundo as provocações e os "patardos" do jogo de matrecos.
"Boa tarde", disse eu, quando pedi uma canha e uma bifana. Sentei-me longe da porta, na sombra duma talha, e revi o meu plano. Não tinha outra saída; só me safava com a tia da Margarida.
Saíra deixando na mesa três copos sujos de espuma seca. Já a dois passos da porta ouvira ainda a frase de abertura, gritada pelo televisor made in china: "Continua a busca ao homem que matou o presidente...".

quarta-feira

Mais a Leste

O Sol de Janeiro deixava uma côr límpida e fria na paisagem da longa planície verde, ponteada de solenes mas despenteados sobreiros. No cimo da lomba foram crescendo e ganhando forma as almofadas bordadas na chapeleira dum cinzento e pequeno familiar.
O Sr. Cascalheta tinha provado o vinho e sentia-se agora como ele, novo. E acelerava em conformidade, nos longos e moles 80 de velho e ferrugento bambolear de Fiesta. No interior, o ar irrespirável de três Kentuckys apagados misturava-se com uma camada de poeira amarelada que anos de vida sobre todo o interior visível haviam tornado à prova de panos do pó.
Os amortecedores cansados incentivavam o bambolear e a descida, pela lomba fora, tornara-se numa acelerada indecisão em direcção ao meu desportivo. Este, surpreendido por tanta ululante e ainda empoeirada almofada, decidira divergir rapidamente mas, ainda assim, não a tempo de evitar o susto e a manobra, suicidária e em curva, do sr. Cascalheta.
Os ruídos foram seis ou sete, já não sei precisar, e demarcaram-se temporalmente de forma individualizada; um por cada vez que o carro, após mais uma voltareta de sugar poeira, tocara de novo o solo da fronteira entre a estrada e a incrédula planície. Os sons tinham sido uma mistura de metal que se esmaga com vidro que estala e, presumo que no último estrondo, castigados por um grito humano.
Parei por momentos na beira da estrada. A fúria acelerada que ali me levara tinha-me dado uns 10 minutos de avanço sobre eles. Uma aparente pequena paragem de...mais de 20 anos, pensei. Decidi arriscar pouco; enquanto acelerava, liguei o 112. "Que se lixe!", pensei. "A seguir a Vendas Novas, nas lombas", ditei à voz que me atendera. E, a fundo, embrenhei-me na paisagem.




terça-feira

O início

Entrei na sala de audiências. O cheiro a óleo de cedro misturava-se com outros cheiros da manhã de segunda; o pó no ar, a humidade de Janeiro, o silvo que fazia aquele raio de raio de luz que insistia em cortar o ar matinal até ao chão de mármore cansado.

Sentei-me na primeira fila. Pensei na primeira pessoa. Olhei em volta à procura da certeza de que não estava sózinho e encontrei-me, de novo, só.

Voltei à estrada, aos lagos, ao som retorcido, à curva do dia, da estrada, do que me trouxe de volta aqui, à primeira fila.

Agarrado ao volante, fazia de novo a viagem pela estrada secundária...

Counter

Web Counter